por Rosana Schwartz
Viver
em São Paulo durante os anos 1920 era uma experiência multicultural. A cidade
abrigava um elevado número de imigrantes de diversos países, pessoas que haviam
deixado suas terras com a esperança de encontrar trabalho e melhores condições de
vida. A maioria eram italianos e portugueses. Ao mesmo tempo em que um expressivo
número desembarcava no Brasil – entre os anos 1870 e 1907, um total de
1.208.042 italianos entraram pelo Porto de Santos –, a cidade de São Paulo, com
a fundação de centenas de fábricas dos mais variados segmentos, em 50 anos (de
1870 a 1920) se configurava como o carro-chefe da industrialização brasileira.
O Projeto internacional de pesquisa PROMACK, liderado pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em parceria com a Universidade Nova de
Lisboa, Universidade do Porto, Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP,
UNICSUL e Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, analisa documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social – DEOPS - Antiga Polícia
Política, criada em São Paulo em 1924
e extinta no início de 1983, conjuntamente com os arquivos de Instituições Italianas e
portuguesas.
Com o intuito de reconstruir a memória política no período de
1924 a 1945, privilegiaram-se as ações de militantes imigrantes italianos e
portugueses anarquistas, comunistas, socialistas e fascistas, e de agentes
anônimos da história política e social do Brasil.
Os arquivos do DEOPS paulista, transferidos em 1983, quando da exitição desse orgão de repressão, para a Polícia Federal, e em 1990
para o
Arquivo do Estado de São Paulo, composto por prontuários, dossiês e vasta
iconografia, uma vez analisada conjuntamente com os documentos do Arquivo da
Torre do Tombo, em Lisboa e Archivio Centrale dello Stato, em Roma, possibilitam
o encontro de informações sobre a dinâmica e integração dos órgãos de repressão,
as parcerias entre as polícias políticas, a intolerância praticada entre os
Estados brasileiro, italiano e português, e a reconstituição de histórias de
anônimos.
A integração de prática de controle
das ações dos indivíduos pelos órgãos repressivos no ocidente foi acirrada no
início do século XX, com a Primeira Guerra Mundial, Revolução Russa, fundação
da Terceira Internacional em Moscou, nos anos 1918 e 1919, e no Brasil, em São
Paulo pela Greve Geral 1917. O temor das elites brasileiras, européias e
norte-americanas com a expansão das idéias anarquistas, socialistas e
comunistas atribuiu aos Estados a possibilidade do controle das populações pelas
polícias urbanas e “inteligências”. Desde o século XVIII, já existiam acordos internacionais
bilaterais, para a extradição de indivíduos considerados criminosos, contudo
somente no final do século XIX e início do século XX, os acordos de expulsão
foram efetivamente concretizados, assim como assinaturas de tratados, trocas de
informações e organizações de polícias integradas para controlar crimes,
criminosos e organizações políticas indesejáveis, na Europa, América do Sul e
Estados Unidos.
A organização das polícias políticas era de
interesse do sistema capitalista e das elites, pois visava não apenas o
controle do crime comum, mas tudo aquilo que fosse entendido como crime contra
o Estado, instituições religiosas e políticas. As fontes pesquisadas mostram
que essas polícias criaram um serviço integrado de busca dos indivíduos
considerados “suspeitos” em várias
partes do mundo ocidental.
As polícias italianas e portuguesas se
destacaram pelo serviço sofisticado de fotografia criminal internacional e centralização
de informação, além de material biográfico referente aos sujeitos considerados
por elas, criminosos políticos. Trabalhavam investigando ações em todos os países
onde existiam italianos e portugueses imigrantes. O Brasil, com o recebimento
de grandes levas de imigrantes em diversos períodos, entrou nessa dinâmica de
investigação. A cidade de São Paulo, em processo de industrialização recebeu,
não só o mundo dos operários, dos imigrantes, das fábricas, das importações e
exportações, das estradas de ferro, mas também o universo das greves, manifestações
dos trabalhadores, diversas posturas políticas e, conseqüentemente, do controle
social e a repressão.
A presença maciça de imigrantes
italianos, portugueses, entre outros e o trânsito dos mesmos, no Cone Sul justificavam,
para as elites, a necessidade de acordos internacionais e de instaurar aparato
repressivo pelas polícias políticas. Os Chanceleres da Argentina, do Brasil e
do Chile, reunidos em Buenos Aires, assinaram em maio de 1915, o "Tratado
para Facilitar a Solução Pacífica de Controvérsias Internacionais", mais
conhecido na historiografia como "Tratado do ABC", (iniciais dos
Estados signatários) com o objetivo de traçar estratégias geopolíticas e de
trocar informações sobre os indivíduos anarquistas, socialistas e comunistas. Acreditavam
que as lideranças sindicais circulavam entre o Brasil e os países da América do
Sul, Norte e Europa, possibilitando o desequilíbrio dos objetivos políticos da
elite.
O interesse em sistematizar o
controle das polícias e das esferas de influências das nações foi aprimorado no
início do século. Em 1909, o Brasil assinou os tratados de extradição e de
treinamento policial com a Itália, Portugal, entre outros, objetivando
controlar as manifestações dos trabalhadores. As polícias deveriam identificar,
controlar, cadastrar os desordeiros e, em seguida, aprender a colher as
informações. As ações dessas missões significavam, não só a interação policial
e o treinamento de policiais por convênios e comissões, mas também a
comercialização de material bélico.
Esse aparato repressivo investigou
grupos diferentes de anarquistas, os vitoriosos da Revolução de Outubro de 1917
e socialistas. A política dos anarquistas ecoava no mundo ocidental,
justificando a criação da Colônia Penal de Clevelândia. Localizada no município de Oiapoque, no Amapá, região
Amazônica, recebia indivíduos considerados subversivos. Sua criação em 5 de
maio de 1922, (com o nome do presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland) é
conseqüência direta da política nacional e internacional de repressão ao
anarquismo e ao comunismo a partir de meados da década de 20
No Brasil dos anos 30, da Era Vargas,
a proposta política de enfrentamento político-ideológica conservadora se
estruturou ainda mais e utilizou a violência como instrumento político. Surgiu de
dentro de uma sociedade policiada até os anos 1930, um “Estado Policial”, organizado de acordo com as estratégias
internacionais, na qual as trocas de informações, assinaturas de tratado eram
pontos chave. Em 1931, os norte-americanos estreitaram laços com o Brasil no sentido
se trabalhar juntos na repressão dos considerados "politicamente indesejáveis".
Os Documentos de polícia do Distrito
Federal, então no Rio de Janeiro, comandada
pelo chefe de polícia Filinto Muller (ex-comandante da Coluna Miguel Costa-Prestes, expulso por
covardia), fornecem dados
sobre a ajuda dos norte-americanos e do serviço secreto inglês para prender
Arthur e Eliza Ewert ou Harry Berger, Elisa
Sabo ou Machla Lenczycki – agentes da Terceira Internacional enviados ao Brasil
para organizar a mal fadada tentativa de revolução denominada Intentona Comunista de 1935. Algumas fichas,
prontuários e dossiês sobre atividades subversivas no Brasil de 1936 e 1939
mostram a triangulação de informações tanto da América Latina, Estados Unidos
como da Europa e citam a colaboração dos serviços policiais no Cone Sul, em 1937,
quando o capitão Affonso Henrique Correa de Miranda se dirigiu a Buenos Aires,
em missão especial, com o intuito de assinar um acordo com a Argentina de
prevenção a atos de terrorismo
internacional para ações conjuntas com a Polícia Política italiana.
Essas polícias catalogavam significativas
relações de nomes de imigrantes e parentes italianos no Brasil, principalmente
da cidade de São Paulo, com o objetivo de procurar ligações entre os comunistas
brasileiros e italianos e antifascistas nos dois países. Roma ficava com uma
cópia de cada correspondência enviada do Brasil à Itália.
Com o estreitamento das relações
policiais Brasil-Itália, a polícia brasileira intensificou o fornecimento de
informações para a repressão, e o governo italiano a pedido do governador de
São Paulo obtinha informações sobre a organização da Milícia Voluntária
Fascista.
Essa vasta documentação possibilita o
cruzamento de dados consistentes sobre a integração e acordos entre as polícias
políticas Latino Americanas, Européia e Norte-americana, pela equipe do projeto
PROMACK. Desvelam ações da Embaixada Italiana com relação à vigilância policial
e as remessas de relatórios à Roma. Entre esses documentos, encontra-se o da reunião
da Seção do Partido Republicano Italiano, realizado no dia dezenove de 1928, na
casa do imigrante Maurelli, na Rua Boa Vista, capital paulista, com a presença
do Prof. Antônio Picarollo, escrito provavelmente por informante, na qual são mencionados
os trabalhos antifascista de Silvio Lodi, Cesare Bernacchia, Luigi Ottobrini,
Angelo Cianciosi, Francisco Barone, Arturo Centini, Conte Frola, Frisciotti, Finocchiaro
e Michele Gatti. Outros documentos relatam a organização no Brasil do serviço
de propaganda anticomunista e envio pelo governo italiano para o gabinete do
chefe de polícia, Filinto Muller, de material de propaganda com o intuito de
servir de inspiração para a criação de discursos contra os comunistas. Esse
material faz parte do Archivio Centrale dello Stato, em Roma. Ainda sobre os
relatos da vigilância policial, constam as atividades propagandistas dos socialistas
italianos mostrando que contavam com quatro grupos atuantes na capital paulista:
central (o Centro Socialista) e três de bairro (Água Branca, Lapa e Brás), além
de diversos militantes nos bairros do Bom Retiro e Barra Funda. E entre a documentação
do DEOPS paulista e a do Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, destacam-se os
referentes às ações, em 1931, do Sindicato dos Manipuladores de Pão, afiliado a
Federação Operária de São Paulo (FOSP) e dos militantes anarquistas Francisco
Cianci, Herminio Marcos e Natalino Rodrigues (um dos principais dirigentes e
organizadores de greves). Com a eclosão de uma greve da categoria, em 1932,
vários padeiros foram presos, fichados e muitos relatórios encaminhados para
Portugal. Nesses documentos encontram-se acusações da categoria ao Departamento
Estadual do Trabalho, de forçar os empregados a se identificarem, por meio de
fotografias e fichas, com o fim de pôr em prática encargos e cadastrar os
trabalhadores mais engajados. As reuniões e as lideranças do Sindicato dos
Manipuladores de Pão, Confeiteiros (com sede no prédio da Rua Quintino
Bocaiúva, n. 80) encontravam-se sob permanente vigilância policial. O que levou
a diversas prisões de vários líderes e significativa documentação sobre suas
ações.
A luta anticomunista era um elo entre
os fascistas italianos, conservadores portugueses e a ditadura do Estado Novo
de Getúlio Vagas (1937-45). Felinto Muller recebeu a Croce Corona d'Itália
(medalha de cavaleiro), em outubro de 1941, juntamente com Gustavo Capanema,
ministro da Educação, Francisco Campos, ministro da Justiça, Frederico Barros
Barreto, presidente do Tribunal de Segurança Nacional, Ernanni Reis, diretor
geral do Ministério da Justiça, integrando e selando parceria com espírito
internacional de repressão.
As
análise dos dossiês e processos de expulsão mostram diversas sociedades
italianas de socorro mútuo, que se comunicavam com a Itália, também
investigadas: Lega Lombarda, a Unione Operaia di Barra Funda,
a União Fraterna da Lapa e Água Branca e a Società
di Mutuo Soccorso del Cambucy . Elas atuavam como apoio e proteção
de grupos políticos socialistas e comunistas, especialmente no período da
formação da Aliança Nacional Libertadora, (organização
liderada pelo Partido Comunista do Brasil, criada com
o objetivo de lutar contra a influência fascista no Brasil), na década de 1930. Os prontuários do
DEOPS possibilitam observar essa comunicação, os embates entre trabalhadores e proprietários, resistências e
tensões na cidade de São Paulo, conflitos intra-étnicos, alguns que culminaram em greves e
enfrentamentos, com a presença da polícia e a identificação e prisão dos mais
atuantes.
O PROMACK composto
por pesquisadores das áreas do conhecimento da história (Frederico Alexandre
Hecker, Rosana Schwartz e Mirtes Moraes), ciência política (Ines Manuel
Minardi), economia (Esmeralda Rizzo) e artes plásticas (Marcos Nepomuceno e
Isabel Orestes) jornalismo (Denise Paiero).
Discentes de
graduação com projetos de iniciação científica e de pós-graduação - doutorado e
mestrado, em seus seis anos de duração vem desvelando, analisando e entrelaçando
essa documentação sob diferentes olhares e metodologias objetivando desvelar
detalhes sobre a imigração italiana e portuguesa no Brasil ainda pouco
estudada, analisada e problematizada.