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sábado, 23 de maio de 2015

segunda-feira, 4 de maio de 2015

GÊNERO E TRÁFICO DE DROGAS: TEIAS QUE ENVOLVEM O AMOR BANDIDO.

                                                                                                               Por Rosana Schwartz
Tratar do envolvimento da mulher no tráfico de drogas e sua relação com o sistema capitalista nos leva a problematizar as representações sociais que os indivíduos carregam consigo acerca de sua identidade, construção do imaginário social, universo simbólico da afetividade e do amor permeado pelas relações de poder e controle social não exclusivo da mulher traficante de drogas, mas da construção social da categoria do gênero feminino e sua ligação com um sujeito masculino – marido, namorado, companheiro ou irmão.
A presença da mulher no campo do crime deve ser objeto de atenção dos estudiosos de gênero, a fim de ampliar os estudos no contexto da subjetividade, afetividade, representação e da violência, sendo ora vítima da violência, ora autora dos atos de violência.
Problematizar essa questão leva-nos primeiro a debater a construção do gênero feminino e masculino nas sociedades ocidentais, as relações de poder envolvidas e as interferências do sistema capitalista nos comportamentos dos sujeitos e aquilo que Lipovestsky (2000) denomina de “cultura amorosa” no universo feminino.
A temática percorre questões sobre a construção de afetividades culturalmente estabelecidas pela sociedade burguesa que podem levar ao envolvimento da mulher em práticas ilícitas ligadas às drogas e a questões sobre a dominação  masculina que  permanece na contemporaneidade.
Dominação do masculino sobre o feminino é fruto da propriedade, da ideia de herança e da própria aceitação das mulheres – ainda que não direta, nem tampouco conscientemente – de práticas de sujeição reveladas nos seus discursos, que, por sua vez, são formados a partir de conteúdos ideológicos que estabelecem os papéis da mulher e do homem na sociedade e, mais especificamente, nas relações de afeto.
Esta palestra, não propõe analisar a afetividade do mundo burguês em sua perspectiva psicológica, mas sim apresentá-lo como uma categoria construída cultural, social e politicamente na vida cotidiana, criada e recriada por discursos, representações, imaginários sociais, ideologias e pela economia que contribui para o estabelecimento de formas diferenciadas de expressões femininas no exagero ao amor, de modo a impulsionar práticas sociais que fogem as regras e valores estabelecidos inclusive ilícitos.
Teorias que problematizam as representações e imaginário sociais (Moscovici, 2003), desvelam formas específicas como as mulheres compreendem os seus papéis nas relações afetivas como cuidadora dedicadas dos seus companheiros. Em nome do amor que sentem por seus companheiros e pela família são capazes de cometer atos criminosos.
Criminosas pelo amor não se reconhecerem enquanto tal. quando se tornam traficantes.
Assim, ao tratarmos do tráfico de drogas pelas mulheres faz-se necessário discutir a construção do afeto feminino e suas mais amplas expressões, como o amor burguês entre mães e filhos, entre irmãos, e, principalmente, o amor  eros, na sua dimensão mulher/homem.
O afeto na perspectiva burguesa relaciona-se com os discursos médicos, evolucionistas e higienistas do século XIX, que pregavam a subordinação da mulher ao homem pelos aspectos biológicos. Dava sustentação a visão da antiguidade que acreditava na existência de só um único sexo, o masculino, considerado superior (perfeito), por possuir mais calor vital, enquanto o feminino era considerado um gênero masculino inferior (imperfeito) por possuir menos calor vital.

Estudos de criminologia de Lombroso afirmavam que os desregramentos femininos são decorrentes da sua natureza, ou seja, se não forem disciplinadas, educadas e domesticadas, as mulheres podem vir a se tornar “criminosas natas”.

Apontava que as delinqüentes apresentam um elenco de características biológicas que, aliadas, constituem uma tipologia, às quais chamava “sinais de degenerescência”.

Em sua análise da mulher criminosa destacava que a mulher é mais propensa a desregramentos do que os homens, entretanto não apresentava de forma consistente e, em igual intensidade, os mesmos sinais encontrados no homem criminoso. (Lombroso e Ferrero, 1895).

Expunha que as mulheres “evoluíram” (no sentido darwinista de evolução das espécies) menos do que os homens e eram menos ativas, mais sedentárias e desprovidas de desafios.

Assim, para ele, as mulheres seriam organicamente mais passivas e conservadoras do que os homens devido, basicamente, à imobilidade do óvulo comparada à mobilidade do espermatozóide.

Os hormônios e o papel reprodutor das mulheres determinariam, segundo os autores citados, inexoravelmente sua emoção, falta de confiabilidade, infantilidade, desvio e imaturidade.

As mulheres também eram rotuladas como ciumentas e vingativas, corpulentas ou masculinas, moralmente deficientes, possuindo configurações cromossômicas anormais ou problemas relacionados com a menstruação e a puberdade. (Heidensohn, 1995).

Por não levar em conta as raízes culturais, políticas, sociais e econômicas de tais diferenças, Lombroso centrava-se em explicações biológicas.
A crença nas diferenças condicionadas pela biologia e fisiologia como explicações para o comportamento feminino, condizente com noções populares largamente difundidas, recebeu o aval científico, fundamentando as primeiras teorias sobre o crime feminino. (Heidensohn, 1995). Outro questionamento relevante é que as teorias psicológicas, de modo geral, e em particular também  identificavam o criminoso como pessoa anormal, portadora de traços patológicos isolados ou reunidos em síndromes complexas, através das quais formulam-se conceituações teóricas facilitadoras da utilização de técnicas psicodiagnósticas comuns ao cotidiano da perícia psiquiátrica.

Buscava-se explicar por meio desses discursos o fenômeno do envolvimento da mulher com a criminalidade pela ideia de desvio sexual.

Para elas, duas possibilidades opostas eram factíveis: o ser mãe ou prostituta. Simbolicamente representado no imaginário pelas figuras da Virgem Maria – pura, casta, sofredora e dedicada ou Eva, dissimulada, traiçoeira, má, desregrada, sedutora. As criminosas são associadas simbolicamente principalmente pela segunda opção.

A imperfeição feminina também era atribuída ás explicações religiosas – A mulher por ter sido criada da costela do Adão, necessita da tutela masculina de um homem, seja pai, marido ou irmão, pois do contrário estava sujeita a desregramentos. Casos de assalto ou furto eram explicados pela histeria feminina, pela falta do controle de um homem quando não casavam ou falta de definição concreta das atribuições sociais femininas na sociedade burguesa, quando questionavam os valores da sociedade. 
Com essas referências que o debate sobre a questão da diferença sexual e os motivos que levam as mulheres a crimes, brotou no século XX, ou seja, crimes realizados pelas mulheres eram patologizados.

Partindo dessas explicações questiona-se como a mulher traficante de drogas se posiciona enquanto sujeito e quais as implicações da compreensão de sua própria identidade dentro do universo representacional.
A mulher traficante passa a conceber a sua própria identidade a partir do outro com o qual se relaciona afetivamente, de modo que até mesmo práticas ilícitas passam a povoar o seu cotidiano.

A inserção feminina no tráfico de drogas na contemporaneidade aponta para algumas formas principais:
1-    por meio dos namorados, maridos ou pais bandidos,
2-     de forma independente, por necessidade, relacionada ao desemprego feminino, baixos salários quando comparados aos salários dos homens, aumento de mulheres responsáveis financeiramente por suas famílias, desempenho de funções subalternas na escala hierárquica.
Para Bourdieu, a dominação masculina é uma expressão de poder que comporta uma dimensão simbólica na qual o pólo dominado da relação – a mulher – submete-se a uma forma de adesão que não é fruto de uma decisão deliberada ou de consciências esclarecidas, mas sim da submissão de corpos socializados (Bourdieu, 1995: 142). Por conseguinte, a divisão sexual dos papéis na sociedade está permeada por um conteúdo ideológico cuja naturalização está revelada nos próprios discursos dos atores sociais.
As relações de poder das quais trata Bourdieu estão diretamente ligadas à construção das identidades dos atores sociais. Suas práticas são resultado das representações que constroem acerca de si mesmos em relação ao meio social em que vivem e, portanto, às pessoas com as quais se relacionam.
Portanto, se a identidade feminina é uma construção que se dá a partir do outro com quem se relaciona – seja companheiro, marido, filhos –, não devemos falar em identidade, mas em identidades múltiplas, frutos de diversificados referenciais.
Stuart Hall (2004), afirma que o conceito de identidade possui três expressões conceituais de identidade: a do sujeito do Iluminismo, a do sujeito sociológico e a do sujeito pós-moderno (cf. Hall, 2004). O sujeito do Iluminismo   estava   baseado  na capacidades de razão, era demasiadamente individualista  e  sua identidade, descrita sobretudo, no masculino (Hall, 2004: 11). Hall vislumbra a
prevalência do masculino na formação das identidades (cf. Hall, 2004). A concepção de um sujeito sociológico, segundo Hall, passa por um processo de mudança, pois o sujeito, outrora unificado e estável, mostra-se agora fragmentado, “composto não de uma única, mas  de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas” (Hall, 2004: 12). Trata-se do sujeito pós-moderno, cuja identidade não é fixa, essencial ou permanente, mas, sim, transformada continuamente, de acordo com os sistemas culturais nos quais está envolvido (Hall, 2004:13).
O sujeito pós-moderno tem múltiplas identidades, que são construídas no contexto de suas trocas simbólicas, ou seja, de acordo com a interação com o meio sociocultural em que vive. É essa concepção que aponta para a multiplicidade de identidades do sujeito que adotamos para esta palestra.
Muitas das mulheres traficantes, apesar de conscientes de que o seu ato representa transgressão à norma penal e sabedoras do repúdio social sobre a figura do traficante, não se reconhecem como criminosas, pois, para elas, as identidades relacionadas à vida doméstica – mãe, companheira, filha – sobrepõem-se àquelas que dizem respeito à sua condição de traficante. De fato, na visão das mulheres traficantes, suas múltiplas identidades não estão dissociadas no cotidiano.
O culto feminino ao amor, ainda no contexto da contemporaneidade, subsiste como uma realidade cultural, figurando como elemento formador de representações sociais. Ainda que amulheres participem ativamente do mercado de trabalho, adquirindo autonomia profissional e financeiralutando pela igualdade e rompendo com a forte tradição de permanência no espaço doméstico, suas concepções acerca do amor e suas expectativas amorosas são bem diferentes daquelas vividas pelos homens. A mulher age em nome do afeto, na medida em que suas práticas estão diretamente relacionadaa sua identidade na relação afetiva.
Por isso, as práticas sociais femininas no contexto do tráfico de drogas não têm os mesmos fundamentos representacionais que as práticas masculinas, notadamente justificadas a partir de aspectos financeiros e da necessidade do homem de se firmar como sujeito em determinado grupo social.

Sendo, assim, são mais facilmente presas, em ordem decrescente de frequência e importância da função feminina associada ao tráfico: “bucha” (pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões), consumidoras, “mula” ou “avião” (transportadoras da droga), vapor (que negocia pequenas quantidades no varejo), “cúmplice”ou “assistente/ fogueteira”.
Outros motivos, o desejo pelo poder via criminalidade, a autoridade do bandido, ganhar dinheiro fácil, e a não submissão às regras sociais também são motivadores do aumento da ação criminosa das mulheres .
Na atualidade a mulher criminosa é abastecedora/distribuidora, traficante, gerente, dona de boca-de-fumo e caixa/contabilidade e merece ser mais bem investigada.
Lipovsky, Anthony e Anthony Giddens (1993) problematizam o amor romantico e o amor passional  e suas práticas referenciadas por representações que levam a ações em nome desse afeto.
Portanto, verificamos que há, de fato, estreita ligação entre o amor e as práticas femininas relacionadas às drogas.
Muito embora tenhamos verificado que o envolvimento afetivo com homens surge como característica comum nos relatos das mulheres presas por tráfico, entendemos que é na esfera das diferenças que se estabelecem as relações de gênero nesse contexto, porque cada sujeito traz, em sua história de vida, uma realidade vivida, sobre a qual se estabelecem sentidos, significados e motivações muito peculiares para as suas práticas sociais. Isso significa que não podemos generalizar a ação humana, mesmo que ela corresponda a referenciais normativos e formais muito específicos, a exemplo do Direito. As mulheres que entrevistamos estão presas por tráfico de drogas e, portanto, são identificadas legalmente como traficantes, como se suas ações relacionadas às drogas fossem semelhantes e homogêneas. No entanto, não somente suas realidades são muito distintas, mas o contexto do envolvimento com as drogas

Além do mais, como lembram Soares e Ilgenfritz (2002, p. 126-127), há negligência para com a mulher e a necessidade de maiores estudos sobre o contexto envolvendo a violência e a mulher, em que esta obtém algum destaque quando ocupa as manchetes de jornais por sua atuação em crimes de grande repercussão, até que a violência masculina rouba-lhe a cena, camuflando crimes femininos.
Os autores que abordaram a questão da mulher no tráfico de drogas foram: Assis e Constantino (2001); Constantino (2001); Soares e Ilgenfritz (2002); Moki (2005); Guedes (2006); Rita (2006). No estudo intitulado Filhas do Mundo - A infração Juvenil Feminina (Assis & Constantino, 2000),
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Alvim, S. F. & Souza, L. (2005). Violência conjugalem uma perspectiva relacional: homens e mulheres agredidos/ agressores. Psicologia: Teoria e Prática, 7(2), 171-206.
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Assis, S. G. & Constantino, P. (2001).  Filhas do mundo: infração juvenil feminina no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz.
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GIDDENS,  Antony.  A transformação   da   intimidade:   sexualidade,   amor   e   erotismo   nas   sociedades  modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2 ed.; tradução Tomaz Tadeu da Slva e Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo, Companhia das Letras: 2000.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais. Investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e realidade, vol. 20, n.2, jul/dez, Porto Alegre, 1995.