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sexta-feira, 17 de julho de 2015

Cruzamento de dados entre os documentos/registros de jornais, revistas e propagandas que se encontram no antigo DEOPS e em instituições européias revela detalhes das imigrações portuguesa e italiana no Brasil.



por Rosana Schwartz
Viver em São Paulo durante os anos 1920 era uma experiência multicultural. A cidade abrigava um elevado número de imigrantes de diversos países, pessoas que haviam deixado suas terras com a esperança de encontrar trabalho e melhores condições de vida. A maioria eram italianos e portugueses. Ao mesmo tempo em que um expressivo número desembarcava no Brasil – entre os anos 1870 e 1907, um total de 1.208.042 italianos entraram pelo Porto de Santos –, a cidade de São Paulo, com a fundação de centenas de fábricas dos mais variados segmentos, em 50 anos (de 1870 a 1920) se configurava como o carro-chefe da industrialização brasileira.
O Projeto internacional de pesquisa PROMACK, liderado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em parceria com a Universidade Nova de Lisboa, Universidade do Porto, Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP, UNICSUL e Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, analisa documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social – DEOPS - Antiga Polícia Política, criada em São Paulo em 1924 e extinta no início de 1983, conjuntamente com os arquivos de Instituições Italianas e portuguesas.
Com o intuito de reconstruir a memória política no período de 1924 a 1945, privilegiaram-se as ações de militantes imigrantes italianos e portugueses anarquistas, comunistas, socialistas e fascistas, e de agentes anônimos da história política e social do Brasil.
Os arquivos do DEOPS paulista, transferidos em 1983, quando da exitição desse orgão de repressão, para a Polícia Federal, e em 1990 para o Arquivo do Estado de São Paulo, composto por prontuários, dossiês e vasta iconografia, uma vez analisada conjuntamente com os documentos do Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa e Archivio Centrale dello Stato, em Roma, possibilitam o encontro de informações sobre a dinâmica e integração dos órgãos de repressão, as parcerias entre as polícias políticas, a intolerância praticada entre os Estados brasileiro, italiano e português, e a reconstituição de histórias de anônimos.
A integração de prática de controle das ações dos indivíduos pelos órgãos repressivos no ocidente foi acirrada no início do século XX, com a Primeira Guerra Mundial, Revolução Russa, fundação da Terceira Internacional em Moscou, nos anos 1918 e 1919, e no Brasil, em São Paulo pela Greve Geral 1917. O temor das elites brasileiras, européias e norte-americanas com a expansão das idéias anarquistas, socialistas e comunistas atribuiu aos Estados a possibilidade do controle das populações pelas polícias urbanas e “inteligências”. Desde o século XVIII, já existiam acordos internacionais bilaterais, para a extradição de indivíduos considerados criminosos, contudo somente no final do século XIX e início do século XX, os acordos de expulsão foram efetivamente concretizados, assim como assinaturas de tratados, trocas de informações e organizações de polícias integradas para controlar crimes, criminosos e organizações políticas indesejáveis, na Europa, América do Sul e Estados Unidos.
 A organização das polícias políticas era de interesse do sistema capitalista e das elites, pois visava não apenas o controle do crime comum, mas tudo aquilo que fosse entendido como crime contra o Estado, instituições religiosas e políticas. As fontes pesquisadas mostram que essas polícias criaram um serviço integrado de busca dos indivíduos considerados “suspeitos” em várias partes do mundo ocidental.
As polícias italianas e portuguesas se destacaram pelo serviço sofisticado de fotografia criminal internacional e centralização de informação, além de material biográfico referente aos sujeitos considerados por elas, criminosos políticos. Trabalhavam investigando ações em todos os países onde existiam italianos e portugueses imigrantes. O Brasil, com o recebimento de grandes levas de imigrantes em diversos períodos, entrou nessa dinâmica de investigação. A cidade de São Paulo, em processo de industrialização recebeu, não só o mundo dos operários, dos imigrantes, das fábricas, das importações e exportações, das estradas de ferro, mas também o universo das greves, manifestações dos trabalhadores, diversas posturas políticas e, conseqüentemente, do controle social e a repressão.
            A presença maciça de imigrantes italianos, portugueses, entre outros e o trânsito dos mesmos, no Cone Sul justificavam, para as elites, a necessidade de acordos internacionais e de instaurar aparato repressivo pelas polícias políticas. Os Chanceleres da Argentina, do Brasil e do Chile, reunidos em Buenos Aires, assinaram em maio de 1915, o "Tratado para Facilitar a Solução Pacífica de Controvérsias Internacionais", mais conhecido na historiografia como "Tratado do ABC", (iniciais dos Estados signatários) com o objetivo de traçar estratégias geopolíticas e de trocar informações sobre os indivíduos anarquistas, socialistas e comunistas. Acreditavam que as lideranças sindicais circulavam entre o Brasil e os países da América do Sul, Norte e Europa, possibilitando o desequilíbrio dos objetivos políticos da elite.
            O interesse em sistematizar o controle das polícias e das esferas de influências das nações foi aprimorado no início do século. Em 1909, o Brasil assinou os tratados de extradição e de treinamento policial com a Itália, Portugal, entre outros, objetivando controlar as manifestações dos trabalhadores. As polícias deveriam identificar, controlar, cadastrar os desordeiros e, em seguida, aprender a colher as informações. As ações dessas missões significavam, não só a interação policial e o treinamento de policiais por convênios e comissões, mas também a comercialização de material bélico.
Esse aparato repressivo investigou grupos diferentes de anarquistas, os vitoriosos da Revolução de Outubro de 1917 e socialistas. A política dos anarquistas ecoava no mundo ocidental, justificando a criação da Colônia Penal de Clevelândia. Localizada no município de Oiapoque, no Amapá, região Amazônica, recebia indivíduos considerados subversivos. Sua criação em 5 de maio de 1922, (com o nome do presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland) é conseqüência direta da política nacional e internacional de repressão ao anarquismo e ao comunismo a partir de meados da década de 20
            No Brasil dos anos 30, da Era Vargas, a proposta política de enfrentamento político-ideológica conservadora se estruturou ainda mais e utilizou a violência como instrumento político. Surgiu de dentro de uma sociedade policiada até os anos 1930, um “Estado Policial”, organizado de acordo com as estratégias internacionais, na qual as trocas de informações, assinaturas de tratado eram pontos chave. Em 1931, os norte-americanos estreitaram laços com o Brasil no sentido se trabalhar juntos na repressão dos considerados "politicamente indesejáveis".  Os Documentos de polícia do Distrito Federal, então no Rio de Janeiro, comandada pelo chefe de polícia Filinto Muller (ex-comandante da Coluna Miguel Costa-Prestes, expulso por covardia), fornecem dados sobre a ajuda dos norte-americanos e do serviço secreto inglês para prender Arthur e Eliza Ewert  ou Harry Berger, Elisa Sabo ou Machla Lenczycki – agentes da Terceira Internacional enviados ao Brasil para organizar a mal fadada tentativa de revolução denominada  Intentona Comunista de 1935. Algumas fichas, prontuários e dossiês sobre atividades subversivas no Brasil de 1936 e 1939 mostram a triangulação de informações tanto da América Latina, Estados Unidos como da Europa e citam a colaboração dos serviços policiais no Cone Sul, em 1937, quando o capitão Affonso Henrique Correa de Miranda se dirigiu a Buenos Aires, em missão especial, com o intuito de assinar um acordo com a Argentina de prevenção a atos de terrorismo internacional para ações conjuntas com a Polícia Política italiana.
Essas polícias catalogavam significativas relações de nomes de imigrantes e parentes italianos no Brasil, principalmente da cidade de São Paulo, com o objetivo de procurar ligações entre os comunistas brasileiros e italianos e antifascistas nos dois países. Roma ficava com uma cópia de cada correspondência enviada do Brasil à Itália.
Com o estreitamento das relações policiais Brasil-Itália, a polícia brasileira intensificou o fornecimento de informações para a repressão, e o governo italiano a pedido do governador de São Paulo obtinha informações sobre a organização da Milícia Voluntária Fascista.
Essa vasta documentação possibilita o cruzamento de dados consistentes sobre a integração e acordos entre as polícias políticas Latino Americanas, Européia e Norte-americana, pela equipe do projeto PROMACK. Desvelam ações da Embaixada Italiana com relação à vigilância policial e as remessas de relatórios à Roma. Entre esses documentos, encontra-se o da reunião da Seção do Partido Republicano Italiano, realizado no dia dezenove de 1928, na casa do imigrante Maurelli, na Rua Boa Vista, capital paulista, com a presença do Prof. Antônio Picarollo, escrito provavelmente por informante, na qual são mencionados os trabalhos antifascista de Silvio Lodi, Cesare Bernacchia, Luigi Ottobrini, Angelo Cianciosi, Francisco Barone, Arturo Centini, Conte Frola, Frisciotti, Finocchiaro e Michele Gatti. Outros documentos relatam a organização no Brasil do serviço de propaganda anticomunista e envio pelo governo italiano para o gabinete do chefe de polícia, Filinto Muller, de material de propaganda com o intuito de servir de inspiração para a criação de discursos contra os comunistas. Esse material faz parte do Archivio Centrale dello Stato, em Roma. Ainda sobre os relatos da vigilância policial, constam as atividades propagandistas dos socialistas italianos mostrando que contavam com quatro grupos atuantes na capital paulista: central (o Centro Socialista) e três de bairro (Água Branca, Lapa e Brás), além de diversos militantes nos bairros do Bom Retiro e Barra Funda. E entre a documentação do DEOPS paulista e a do Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, destacam-se os referentes às ações, em 1931, do Sindicato dos Manipuladores de Pão, afiliado a Federação Operária de São Paulo (FOSP) e dos militantes anarquistas Francisco Cianci, Herminio Marcos e Natalino Rodrigues (um dos principais dirigentes e organizadores de greves). Com a eclosão de uma greve da categoria, em 1932, vários padeiros foram presos, fichados e muitos relatórios encaminhados para Portugal. Nesses documentos encontram-se acusações da categoria ao Departamento Estadual do Trabalho, de forçar os empregados a se identificarem, por meio de fotografias e fichas, com o fim de pôr em prática encargos e cadastrar os trabalhadores mais engajados. As reuniões e as lideranças do Sindicato dos Manipuladores de Pão, Confeiteiros (com sede no prédio da Rua Quintino Bocaiúva, n. 80) encontravam-se sob permanente vigilância policial. O que levou a diversas prisões de vários líderes e significativa documentação sobre suas ações.

A luta anticomunista era um elo entre os fascistas italianos, conservadores portugueses e a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vagas (1937-45). Felinto Muller recebeu a Croce Corona d'Itália (medalha de cavaleiro), em outubro de 1941, juntamente com Gustavo Capanema, ministro da Educação, Francisco Campos, ministro da Justiça, Frederico Barros Barreto, presidente do Tribunal de Segurança Nacional, Ernanni Reis, diretor geral do Ministério da Justiça, integrando e selando parceria com espírito internacional de repressão.
            As análise dos dossiês e processos de expulsão mostram diversas sociedades italianas de socorro mútuo, que se comunicavam com a Itália, também investigadas:  Lega Lombarda, a Unione Operaia di Barra Funda, a União Fraterna da Lapa e Água Branca e a Società di Mutuo Soccorso del Cambucy . Elas atuavam como apoio e proteção de grupos políticos socialistas e comunistas, especialmente no período da formação da Aliança Nacional Libertadora, (organização liderada pelo Partido Comunista do Brasil, criada com o objetivo de lutar contra a influência fascista no Brasil), na década de 1930. Os prontuários do DEOPS possibilitam observar essa comunicação, os embates entre trabalhadores e proprietários, resistências e tensões na cidade de São Paulo, conflitos intra-étnicos, alguns que culminaram em greves e enfrentamentos, com a presença da polícia e a identificação e prisão dos mais atuantes.
O PROMACK composto por pesquisadores das áreas do conhecimento da história (Frederico Alexandre Hecker, Rosana Schwartz e Mirtes Moraes), ciência política (Ines Manuel Minardi), economia (Esmeralda Rizzo) e artes plásticas (Marcos Nepomuceno e Isabel Orestes) jornalismo (Denise Paiero).
Discentes de graduação com projetos de iniciação científica e de pós-graduação - doutorado e mestrado, em seus seis anos de duração vem desvelando, analisando e entrelaçando essa documentação sob diferentes olhares e metodologias objetivando desvelar detalhes sobre a imigração italiana e portuguesa no Brasil ainda pouco estudada, analisada e problematizada.  


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